quarta-feira, 30 de junho de 2010

Czechvar.


Enquanto ia levantando da mesa pra ir ao banheiro, ele me disse que meu único defeito era não gostar de vodca. E ele tinha essa mania: quando ficava bêbado, despejava umas frases que pareciam não se encaixar na conversa que estávamos tendo no momento, ou em qualquer outra, de qualquer outro casal, em qualquer outro momento. Eu, normal que sou, demorava e só as comentava quando tinha certeza de tê-las entendido, coisa que nem sempre acontecia. Mas naquela terça-feira à noite, no boteco de sempre, depois de oito cervejas caras, eu quis saber qual era a dele com o meu asco à vodca, porque eu tinha essa mania de querer saber exatamente das intenções escondidas por detrás de cada uma de suas palavras. Acreditava que não existiam coisas ditas sem propósito e que, caso existissem, eu certamente as odiaria. Eu me esforçava por ser sempre minuciosa com o que falava, porque ele era imprevisível e louco, podendo reagir a um mesmo comentário com silêncios insustentáveis pelo resto da noite ou fugas repentinas. Portanto, eu exigia que ele tivesse o mesmo cuidado ao despejar seus rompantes de sinceridade rumo ao meu corpo magro dominado pelo mais delicioso lúpulo tcheco, porque eu era louca, russa e não gostava de vodca.


Fiquei arrumando o sutiã enquanto esperava a eternidade que ele demorava no banheiro. Ele talvez estivesse fumando lá fora sem me avisar, talvez tivesse se esquecido de mim aqui no balcão e parado pra conversar com algum belo exemplar do sexo feminino que depois ele juraria não ser atraente ou sequer ter existido. Outra mania. Éramos um casal tolerante, todos diziam, mas ninguém ousava comentar sobre as longas e sofridas escaladas rumo ao nosso equilíbrio invejável.

Quando nos conhecemos, meus quinze anos tentaram me manter metros e metros afastada do universo adulto dele: eu não bebia, comia biscoitos integrais, ouvia Yes e saía de casa uma vez por mês pra trepar com desconhecidos que tremiam diante da minha bunda bem torneada de adolescente e dos meus peitinhos brancos e minúsculos. Ele vivia enchendo a cara com amigos que há tempos haviam terminado a faculdade, fumava maconha, ia a shows do Ozzy Osbourne e trepava com desconhecidas de corpos bem distantes da perfeição pelo menos duas vezes por semana. Eu queria me casar com um idiota que me amasse incondicionalmente e que perdesse a virgindade comigo, que fizesse dinheiro honesto pra pagar a escola dos três filhos que teríamos e que me escrevesse cartas de amor no dia dos namorados depois de dez ou quinze anos de casamento. Ele vinha fugindo de relacionamentos promissores há mais de dois anos, depois de ver o último deles afundando graças a meses e meses de louça suja na pia e vinha tentando, desde então, destruir seu fígado, seus pulmões, seus neurônios e seu dinheiro até finalmente morrer.

Então, eu apareci pra ele e ele apareceu pra mim. Apesar de improvável, sabíamos cantar as mesmas músicas e ele gostou da minha bunda – sempre ela - e eu gostei do cabelo dele e por duas semanas não conseguimos parar de dividir nossas histórias. Ele me ouvia contar coisas sobre meus pais mortos e ria do sotaque russo que eu tentava forçar, sem sucesso. Dirigia horas e horas me ouvindo falar enquanto pensava em um lugar decente pra matar a fome que eu sempre tinha e sempre acabava tomado por algum mau humor que eu não entendia e que ele não fazia questão de explicar. Tentava tirar minhas roupas no cinema e eu, fingindo-me de ofendida, segurava suas mãos só pra depois soltar e deixar começar tudo de novo. Desde o início, notei que sua língua era mais hábil que o normal e quase recuei quando vi seu pau ereto pela primeira vez, em nosso terceiro encontro. Não havia visto muitos paus na vida e aquele era, sem dúvidas, impressionante, do tipo que deixa a gente sem saber direito por onde começar, mas que depois acaba se mostrando delicioso e anatomicamente ideal. Tive que chupá-lo. Apesar de termos concordado em passar um tempo naquele quarto de motel só porque estava calor e queríamos ar condicionado, eu não me permitia e nem estava conseguindo negar sexo por completo. Então, como por consolo, deixei que gozasse duas vezes na minha boca.

Mesmo com todo o entusiasmo e toda a nossa boa vontade, tivemos primeiras trepadas decepcionantes e nós dois sabíamos disso. Não conseguíamos nos mexer ao mesmo tempo, eu não gozava nunca e terminávamos todas as nossas tentativas frustrados e com raiva um do outro. Pensamos em desistir, pois ele estava velho e sem paciência pra me ensinar a beber e não nos dávamos bem na cama. Eu sabia que ele não era meu idiota e que não me amaria incondicionalmente, mas antes de fugirmos acabou acontecendo. Com o carro estacionado numa rua escura e estreita, mas que cortava uma grande avenida, ele me pediu, depois de uns beijos brutos e cheios de língua, que eu me sentasse em seu pau, de costas pra ele. Obedeci. Eu gemia alto e segurava firme com as duas mãos na direção. Ele me bateu. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes. E então nos tornamos namorados.

Agora, sete anos depois, eu bebia diariamente e havíamos descoberto inúmeras semelhanças cinematográficas e ideológicas, a diferença assustadora entre nossas idades havia deixado de ser piada entre seus amigos e eles finalmente me levavam a sério. Ainda nos estapeávamos quando ele queria ouvir Neil Young a noite toda ou quando eu elogiava demais os meus quadrinhos favoritos e dizia que ele tinha que ler isso e tinha que ler aquilo, mas morávamos juntos, limpávamos a casa todos os domingos, vendíamos pão, fazíamos traduções exaustivas, trocávamos apelidos ridículos e bilhetes safados, engordávamos, tentávamos ter um filho e trepávamos maravilhosamente bem algumas vezes por semana. E ele sempre me enchia o saco com essa merda de vodca.

Nós dois passávamos todos os dias de nossas vidas alcoólatras nos dedicando às bebidas de maior qualidade. Poucos amigos aceitavam nossos convites pra sair, éramos uns chatos. Verdadeiramente apaixonados por cerveja, direcionávamos grande parte de nossa renda mensal a experimentá-las e discuti-las. Tínhamos uma paixão indestrutível por uma marca inglesa e por absolutamente todas as cervejas tchecas, que eram as mais bem lupuladas e que, na minha forma peculiar de descrever cervejas que ele entendia tão bem, exalavam cheiro de bosque lodoso quando abertas. Às vezes, porém, acabávamos cedendo e nos rendendo a outras bebidas: uísque quando estávamos prestes a trepar ou vendo filmes de faroeste na TV, vinho quando estávamos prestes a trepar e/ou quando estava frio, e ele me admirava – sem participar - enquanto eu apreciava, como homem feito, minhas doses de cachaça de quase todos os estados brasileiros que tomava quando queria ficar bêbada rapidamente. Mas não vodca. Nunca vodca. Odiávamos vodca. Eu, principalmente. Vomitei tudo o que havia dentro de mim quando tomei vodca pela primeira vez e ninguém me convenceria de que uma coisa que precisa ser misturada com outra pra ser bebida é uma boa idéia.

Então, ele veio. O desgraçado veio andando sorridente com um irritante copo de vodca na mão. Daqueles de uísque, largo, e com vodca até a metade. Era uma das manias dele atingindo níveis absurdos. Ele fazia isso com comida também. Insistia pra que eu comesse coisas que odiava desde a infância, ficava dizendo come come come come come come come come come até me deixar puta, mas eu não comia. Aí jogava a coisa que eu não queria comer bem no meio do meu prato e continuava com o come come come insuportável. Por último, pegava com o garfo e colocava bem perto da minha boca, me fazia rir e pronto, enfiava lá dentro. E como eu o odiava nesses momentos. Chegava a gritar de ódio, às vezes chorava e explicava pra ele que aquilo era de uma maldade sem tamanho, mas não adiantava. Na semana seguinte lá estava ele tentando me fazer comer seus vegetais estranhos ou suas combinações que tanto me assustavam.

Você é russa, ele disse batendo o copo na mesa e fazendo o líquido transparente saltar. Tem que aprender a tomar como o seu pai tomava, todos os dias antes das refeições, sem frescura. Meus olhos se encheram d’água e eu implorei mentalmente para que ele não fizesse aquilo, pra que se sentasse, pedisse mais uma Fuller e continuasse a ser o cara legal com o qual eu havia escolhido morar. Mas não, ele já estava segurando o copo e a minha mão ao mesmo tempo. Eu o odiava. E por que ele não tomava? Por que é que ele não se entregava ao maravilhoso mundo russo da vodca sem gelo? Eu havia nascido lá e botado o pé na Rússia apenas duas vezes quando ainda era criança, mas nunca mais, não nutria nenhuma simpatia por aquele lugar ou pelos meus familiares russos e estava pouco me fodendo pra tradição ou para o que meu pai morto fazia todos dias. E ele insistia. Bebe bebe bebe bebe bebe bebe tem que beber bebe bebe bebe. Trinta segundos de tortura absoluta.

Você é um merda, eu falei. Você é um merda covarde, bêbado e idiota. Peguei minha bolsa, as chaves do carro em cima da mesa e fui embora. Voltei pra casa com o carro dele e sentindo imensa dificuldade pra dirigir, pois ele nunca havia me deixado dirigir bêbada. Ele chegou em casa uns vinte minutos depois, de taxi. Me deu um beijo na boca, me mostrou três lindas garrafas verdes que logo depois colocou na geladeira e perguntou se podia me levar pra cama. Acabei deixando.

Mina Vieira.

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