quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Relato (ou Homem)


Moro em uma cidade que se pretende grande e descolada. Bares modernos, escuros e com ar condicionado potente, prédios altos, casais inusitados se beijando freneticamente pelas esquinas e cinco sorveterias a cada quarteirão. Na minha cidade que avança lentamente rumo ao caos mora Cíntia. E Cíntia é, com o perdão da hipérbole, a mulher mais fascinante que já conheci. Ela me amava, apesar de eu achar que jamais havia merecido. Com proporções perfeitas, eu deixava que ela ocupasse minha cama três vezes por semana, às vezes mais, e a contemplava com ternura e boa dose de desejo sempre que saía para trabalhar. Proporções perfeitas! Seios brancos de mamilos delicados que eu mordiscava em reverência e logo abaixo aquela barriga lisa de quem havia comido pouco quando criança, acabando num ventre largo que às vezes parecia exagerado diante de tanta miudeza: era o corpo de Cíntia estirado em minha cama. Mas era também impressionante quando acordada, é necessário dizer. Sua memória infalível me salvava constantemente de diversos possíveis problemas e a graça com que demonstrava conhecer cada centímetro sujo dos meus infinitos labirintos mentais não me incomodava nunca. Deixava que Cíntia falasse por mim, realizasse minhas vontades, me lembrasse das minhas convicções e cavalgasse destramente sobre mim sem que eu sequer ameaçasse interrompê-la. Assim, eu vivia feliz e confortável há três anos ao lado dos 1,74m de Cíntia.

Mas, claro, houve uma noite em que ela não estava aqui para me fazer acreditar em minhas próprias convicções. Um erro fatal. Eu estava em um dos muitos bares modernos, escuros e gelados que conheço e Cíntia estava lá longe irritando o mundo com o seu equilíbrio e a sua estranha compreensão de todas as coisas, linda e ocupada. Então, decidi ser homem.

Clarissa foi andando rumo ao banheiro e, mesmo quando já estava passos distante de mim, ainda era possível sentir o seu perfume. Para já me redimir, digo que era tão nauseante quanto a sua voz. E isso quer dizer muito. Então, ela voltou e me cumprimentou cheia de uma intimidade e um interesse que há tempos eu não presenciava partindo de um corpo feminino que não fosse o de Cíntia. Pensei nela, pensei na minha Cíntia lá longe enquanto meu pau endurecia impiedosamente por uma outra que nunca seria digna de uma das minhas ereções. Logo eu, eu que havia gastado grande parte da minha adolescência convencendo a mim mesmo e aos outros de que não me excitava com clarissas, agora estava ali, ridículo, tentando esconder meu tesão por uma mulher que reunia em seu corpo pouco gracioso uns tantos motivos pelos quais eu repudiava a humanidade.

Porém, Clarissa aproximava sua boca grande da minha orelha para vencer o barulho da banda ruim e me confundia com perguntas e comentários incoerentes – mas às vezes verdadeiros – sobre Cíntia, a minha. O intervalo entre meus goles se tornava cada vez menor, até que o ato engolir minha cerveja gelada se consolidou como constância. Às vezes, a voz esganiçada e falha de Clarissa parecia dizer algo interessante e às vezes eu passava a mão em seus cabelos e pensava nos cabelos de Cíntia que sempre dançavam hipnoticamente quando ao vento. Mas não havia a mulher que eu amava em Clarissa e talvez por isso quiséssemos nos beijar. Ali. Cercado de pessoas que sentiam verdadeiro carinho por minha vida conjugal, que a respeitavam e chegavam a invejá-la. Ali, beijei Clarissa com a boca que há três anos decidi entregar a outra mulher, escolhida espontaneamente num mar infinito de possibilidades. Traí, além de Cíntia, também minha própria escolha sem sequer ponderar, minha maior convicção, o Deus cujos pés eu beijava quase todas as noites antes de dormir. Como um animal, sugava Clarissa para que todos vissem, metia minha língua meio bêbada numa boca desconhecida e preciso confessar que gostava. Uma noite, tive um corpo que não o dEla em minhas mãos e fui feliz.

No dia seguinte, negava-me a falar com Cíntia não sei se por covardia ou medo ou arrependimento ou pena. Mas me doía pensar nela e me lembrar de como eu havia tido a coragem de começar a destruir o que nós, juntos e apaixonados, construímos com afinco. O dia arrastou-se como que por tortura e, a cada ruído menos usual que me surpreendia, tinha a certeza de ter sido descoberto. Ao mesmo tempo em que fugia dos telefonemas e me esquivava do encontro inevitável, desejava ouvi-la e perceber que tudo estava bem e que o amor prevaleceria e que em poucos meses estaríamos morando juntos, comendo a mesma comida e depositando dinheiro na mesma conta. Mas minha Cíntia era feroz e não foi possível evitá-la por muito tempo. Naquela mesma noite a tive subindo no meu colo, lambendo meu pescoço e gemendo meu nome com a cara metida no travesseiro. Eu a amava com toda a minha sinceridade e devoção, mas ainda me excitava quando pensava nos seios grandes de Clarissa pouco abaixo do meu peito.

Passou. Cíntia sofre as dores da minha inconsequência até hoje, eu sei. Nunca contei a ela e pretendo nunca contar, pois isso ofenderia a serenidade que tanto sofremos para atingir, mas ela me olha doída a cada menção à Clarissa e sei que me odeia durante os seus silêncios. Arranha minhas costas de leve, encarando o teto, enquanto se questiona sobre quando é que eu vou aprender a dizer a verdade e, principalmente, sobre os meus motivos. Às vezes comete a estupidez de se achar feia e indigna. Agora, se nega a ter filhos e diz que minha porra dentro dela a incomoda, mas continua engolindo. Não sei dizer até quando. Ela, brutal, me pune sutilmente e sem de fato querer me machucar. Pretendo perdoá-la quando decidir me morder até sangrar e rezo todos os dias – às vezes com medo de ser atendido – para que ela também se permita pecar e me traia e eu talvez finalmente comece a me sentir menos pesado. Amo Cíntia verdadeiramente.

Mina Vieira.

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